terça-feira, 3 de novembro de 2009

um coração alado

ENTÃO Almitra disse:

-Fala-nos do Amor.

Ele levantou a cabeça e olhou o povo;

um silêncio caiu sobre eles.
E disse com voz forte:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e escarpados.

E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor vos coroa,
também deve crucificar-vos.

E sendo causa do crescimento,
deve cuidar também da poda.

E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais tenros que tremem ao sol,
também penetrará ate às raízes
sacudindo o seu apego a terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo para vos livrar do palhiço.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes um bocado do coração da Vida.

Mas, se no vosso medo, buscais apenas a paz do amor, o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez e sair da eira do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir, mas nunca todos os vossos risos,
e chorar, mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo, e só recebe de si mesmo.
O amor não possui nem quer ser possuído.
Porque o amor basta ao amor.

Quando amardes, não digais:
-Deus está no meu coração,
mas antes:
- Eu estou no coração de Deus.

E não penseis que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos julgar dignos, marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo senão consumar-se.
Mas se amardes, e tiverdes desejos, deverão ser estes:

Fundir-se e ser um regato corrente a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.

Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com um coração alado e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo com gratidão;
e adormecer tendo no coração uma prece pelo bem amado e um canto de louvor na boca. . .

Khalil Gibran, in "O Profeta
"

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