sábado, 14 de novembro de 2009

pedras são árvores

Pedras são árvores
apenas um pouco
mais antigas

Casimiro de Brito


ESPELHO









E eis que do tronco

rompem-se os brotos:

um verde mais novo da relva

que o coração acalma:

o tronco parecia já morto,

vergado no barranco.

E tudo me sabe a milagre;

e eu sou aquela água de nuvens

que hoje reflecte nas poças

mais azul seu pedaço de céu,

aquele verde que se racha da casca

e que tampouco ontem à noite existia.

Salvatore Quasimodo


sábado, 7 de novembro de 2009

DOIS POEMAS DE SÃO JOÃO DA CRUZ



TODA CIÊNCIA TRANSCENDENDO

Entrei-me adonde não soube

e quedei-me não sabendo,
toda ciência transcendendo.

Eu não sabia onde entrava,
porém, quando ali me vi,
sem saber adonde entrava,
grandes coisas entendi:
não direi o que senti,
que mo quedei não sabendo,
toda ciência transcendendo.

De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda soledade,
entendida a via recta:
era coisa tão secreta,
a fala subvertendo,
toda ciência transcendendo.

Estava tão embebido,
tão absorto e tão alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado:
e o espírito dotado
de entender não entendendo,
toda ciência transcendendo.

Que ali chega verdadeiro
de si mesmo desfalece:
quanto sabia primeiro
muito baixo lhe parece:
sua ciência tanto crece
que se queda não sabendo
toda ciência transcendendo
.
Quanto mais alto se ascende,
tanto menos entendia
que negra nuvem se acende
que as trevas esclarecia:
por isso quem a sabia
queda sempre não sabendo
toda ciência transcendendo.

Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os mais sábios revolvendo
jamais o podem vencer:
pois não chega o seu saber
a no' entender entendendo,
toda ciência transcendendo.

E é de tão alta excelência
este mais sumo saber
que faculdade ou ciência
não há para o compreender:
quem a si souber vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.

E, se quiserdes ouvir,
consiste a suma ciência
em num subido sentir
da só divinal Essência:
obra é de sua clemência
o quedar não entendendo,
toda ciência transcendendo.


NOITE ESCURA

Em uma Noite escura,
com ânsias em amores inflamada,
ó ditosa ventura!,
saí sem ser notada.
estando minha casa sossegada.

A ocultas, e segura,
pela secreta escada, disfarçada,
ó ditosa ventura!,
a ocultas, embuçada,
estando minha casa sossegada.

Em uma Noite ditosa,
tão em segredo que ninguém me via,
nem eu nenhuma cousa,
sem outra luz e guia
senão aquela que em meu seio ardia.

Só ela me guiava,
mais certa do que a luz do meio-dia,
adonde me esperava
quem eu mui bem sabia,
em parte onde ninguém aparecia.

Ó Noite que guiaste!,
ó Noite amável mais do que a alvorada!,
ó Noite que juntaste
Amado com amada,
amada nesse Amado transformada!

No meu peito florido,
que inteiro para ele se guardava,
quedou adormecido
do prazer que eu lhe dava,
e a brisa no alto cedro suspirava.

Da torre a brisa amena,
quando eu a seus cabelos revolvia,
com fina mão serena
a meu colo feria,
e todos meus sentidos suspendia.

Quedei-me e me olvidei,
e o rosto reclinei
sobre o do Amado:
tudo cessou, me dei,
deixando meu cuidado
por entre as açucenas olvidado.


São João da Cruz

CANTAR DA ALMA QUE GOZA
























Que sei bem eu a fonte que emana e corre
mesmo de noite.
Aquela eterna fonte está escondida,
mas eu bem sei onde tem sua guarida,
mesmo de noite.
Sua origem não a sei, pois não a tem,
mas sei que toda a origem dela vem,
mesmo de noite.

Sei que não pode haver coisa tão bela,
e que os céus e a terra bebem dela,
mesmo de noite.
Eu sei que nela o fundo não se pode achar,
e que ninguém pode nela a vau passar,
mesmo de noite.
Sua claridade nunca é obscurecida,
e sei que toda luz dela é nascida,
mesmo de noite.

Sei que tão cautelosas são suas correntes,
que céus e infernos regam, e as gentes,
mesmo de noite.
A corrente que desta vem
é forte e poderosa, eu o sei bem,
mesmo de noite.
A corrente que destas duas procede,
sei que nenhuma delas procede,
mesmo de noite.

Aquela eterna fonte está escondida,
neste pão vivo para dar-nos vida,
mesmo de noite.
De lá está chamando as criaturas,
que nela se saciam às escuras,
porque é de noite.
Aquela viva fonte que desejo,
neste pão de vida já a vejo,
mesmo de noite.

S. João da Cruz

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

os pilares do templo elevam-se distanciados


ALMITRA falou de novo e disse:
- E quanto ao casamento, Mestre?
E ele respondeu, dizendo:

- Nascestes juntos, e juntos ficareis para sempre.
Estareis juntos quando as asas brancas da morte acabarem com os vossos dias.
Ah, estareis juntos mesmo na silenciosa memória de Deus.
Mas que haja espaço na vossa união e que os ventos celestiais possam dançar entre vós.
Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor uma prisão;
Deixai antes que seja um mar ondulante entre as margens das vossas almas.
Enchei a Taça um do outro, mas não bebais de uma só taça.
Parti o pão ao meio mas não comais do mesmo pão.
Cantai e dançai juntos, mas deixai que cada um de vós fique sozinho, como estão sozinhas as cordas do alaúde enquanto nelas vibra a mesma harmonia.
Entregai os vossos corações, mas não ao cuidado um do outro.
Pois só a mão da Vida pode conter os vossos corações.
E ficai juntos mas não demasiado juntos:
Pois os pilares do templo elevam-se distanciados
e o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro. .

Khalil Gibran ~in "O Profeta"

terça-feira, 3 de novembro de 2009

um coração alado

ENTÃO Almitra disse:

-Fala-nos do Amor.

Ele levantou a cabeça e olhou o povo;

um silêncio caiu sobre eles.
E disse com voz forte:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e escarpados.

E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor vos coroa,
também deve crucificar-vos.

E sendo causa do crescimento,
deve cuidar também da poda.

E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais tenros que tremem ao sol,
também penetrará ate às raízes
sacudindo o seu apego a terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo para vos livrar do palhiço.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes um bocado do coração da Vida.

Mas, se no vosso medo, buscais apenas a paz do amor, o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez e sair da eira do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir, mas nunca todos os vossos risos,
e chorar, mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo, e só recebe de si mesmo.
O amor não possui nem quer ser possuído.
Porque o amor basta ao amor.

Quando amardes, não digais:
-Deus está no meu coração,
mas antes:
- Eu estou no coração de Deus.

E não penseis que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos julgar dignos, marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo senão consumar-se.
Mas se amardes, e tiverdes desejos, deverão ser estes:

Fundir-se e ser um regato corrente a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.

Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com um coração alado e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo com gratidão;
e adormecer tendo no coração uma prece pelo bem amado e um canto de louvor na boca. . .

Khalil Gibran, in "O Profeta
"